quinta-feira, 10 de setembro de 2009

No ônibus, uma pequena história...

Apresentação: Nesse trecho do diário, Rafael viaja por tempos diferentes enquanto faz o trajeto de ônibus, observando algumas situações que não estão no local de seu campo, mas no deslocamento até ele.
Fundo de Origem: BIEV/LAS/PPGAS/UFRGS
Fonte: Coleção Projeto: Itinerários urbanos, memória coletiva e sociabilidades no mundo contemporâneo - CNPq (ALCReCE)
Autor: Rafael Devos - Bolsista AT/CNPq
Local: Ônibus São Francisco - Porto Alegre/RS
Data de Produção: 28 de abril de 2001
Tags: Interiores da Escrita Etnográfica


Tudo isso na minha cabeça me fazia pensar que minha etnografia vai ser bem mais intensa do que tomar cafezinho com as velinhas. Mas as vovós tem muito a me dizer, e foi isso que fui fazer hoje. No ônibus, uma pequena história. Peguei o São Francisco, ônibus mais caro, intermunicipal. O bus não estava cheio, algumas pessoas sentadas, com um jeito de quem retorna pra casa. O motorista arranca e um homem de camisa, gravata e paletó, evidentemente muito “fuleiro” na vestimenta, levanta-se e pede a atenção. Diz que tem paralisia infantil, e realmente fala com dificuldades, enrola a língua e não parece bebum. Com uma expressão suplicante, pede que comprem pipoquinhas por R$1,00, para ele poder sustentar a família, porque não tem trabalho para quem é doente. Silêncio no ônibus, as pessoas olham para as janelas, outras lhe dirigem um olhar desatento, como se ele fosse transparente. Eu dirijo esse olhar, por um instante o olho nos olhos, desvio e lembro que o via, há uns 2 ou 3 anos atrás, nos ônibus da zona sul, dizendo que tinha AIDS e pedindo ajuda. Lembrei pelo jeito como se humilhava. Quando ele conseguiu convencer um sujeito a comprar pipoca pros filhos, que nem tinham cara de que queriam pipoca, um velho de uns 80 anos, sentado no banco da frente comenta com o motorista algo sobre trabalho, que o miserável tem dinheiro pra gravatinha. O miserável vira para o velho. E o que que tem se eu uso uma gravata de 1,99? Se eu tivesse com uma arma lhe assaltando o senhor não ia reclamar da minha roupa. O velho. Eu tava falando era do meu neto que é cego, surdo e me ajuda. O miserável olha derrotado pro resto dos passageiros, vê que não vai vender mais nada e desce na parada seguinte, não sem antes resmungar que não tem família que cuide dele, que ele é que precisa cuidar dos outros. O velho o encara firme, o coitado desce e o velho segue encarando o miserável que vai ficando pra trás até sumir da visão. O ônibus percorre a Farrapos e os comentários percorrem o ônibus. Vai trabalhar. Vai cortar grama. Trabalho tem.

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